Domingas Laranjeira: força, coragem e quebra de tabus

Coragem, atrevimento e pitadas de um humor irreverente. É dessa mistura que é feita Maria Domingas Gomes Laranjeira, 68, ou “Yáyá”, para os mais íntimos. Independente, três filhos, três netos, nascida na pobreza rural, enfrentou preconceitos para viver do seu jeito e seguir carreira no Direito, flamenguista e uma das primeiras defensoras públicas do Amazonas. A história dela daria um livro ou dois. Viu a Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) nascer, acompanhou e atuou em todas as etapas de crescimento da instituição e hoje segue na ativa. “Não tenho vontade de me aposentar, não”. “Se eu não morrer antes, só saio quando fizer 75”.

Domingas Laranjeira milita, como costuma dizer, na assistência jurídica à população, desde o dia 1º de junho de 1985, quando começou a trabalhar no então Departamento de Assistência Judiciária, da Secretaria de Justiça do Estado. “Não éramos designados como defensores públicos. Nosso cargo era de advogado de ofício”, conta. A Defensoria Pública só foi criada pela Constituição Federal, em 1988, e a DPE-AM, somente em 30 de março de 1990. Com a criação da instituição, aqueles que já atuavam como advogado de ofício puderam optar pela carreira de defensor público.

Mas a trajetória de Domingas começou muito antes, em 1952, quando nasceu “em cima de um couro de boi”, em um sítio na zona rural de Boa Vista, Roraima. Filha de mãe analfabeta e pai que não completou o ensino ginasial, casal que trabalhava na roça para sobreviver, Domingas conheceu cedo as dificuldades da pobreza. Foi alfabetizada em casa, por um tio professor e só foi para a escola aos 11 anos de idade.

A mais velha de oito filhos, Domingas, ainda criança, teve que cuidar de irmãos mais novos e de afazeres domésticos enquanto os pais trabalhavam. “Minha mãe deixava as comidas no fogão, que era à lenha. Tinha que botar um banco para eu subir e mexer as panelas, e ai de mim se deixasse queimar. Eu com sete anos, tinha que ficar puxando tição de fogo para não ficar muito forte. Queira saber, não!”.

O apelido “Yáyá” é uma homenagem a avó paterna. O nome Domingas homenageia a avó materna. A homenagem a avó paterna veio no apelido. “Tenho o apelido até hoje. Na minha cidade, todo mundo me conhece como “Yáyá”.

Domingas também trabalhou em casa de família quando criança fazendo trabalho de “minidoméstica”, como diz, para poder começar a estudar. “Lavava banheiro, ajudava a lavar louça, essas coisas”, conta.

“A gente tinha uma vida muito simples, bem simplória mesmo. E, quando as pessoas às vezes vêm aqui, os pobres, e começam a se lamentar, eu digo: ‘Eu tô aqui vestida de doutora, mas eu sei o que é ser pobre, porque eu nasci em cima de couro de boi. Porque não tinha cama, não tinha nada”, diz Domingas.

Para Domingas, algumas pessoas têm mais oportunidade do que outras e as que se sentem desprestigiadas, têm que lutar pelo seu espaço. “Não pode ficar se lamentando”, afirma, do alto da sabedoria dos seus 68 anos, que faz questão de ressaltar. “Não tenho problema de dizer a idade, até porque estou muito bem para os meus 68”.

Relação com o Direito

A relação de Domingas com o Direito começou após o fim de seu casamento, em um momento de guinada da vida. Vencendo barreiras, a jovem “Yáyá” conseguiu terminar os estudos no então “Pedagógico”, o equivalente a um ensino médio que formava professores para dar aula até a sexta série. Já formada, casou aos 21 anos e separou-se dois anos depois, já com um filho para criar. “O que não consegui foi ser submissa. Nunca consegui e me separei”, diz.

Era 1976 e Domingas, aos 23 anos, viajou a Manaus para se arriscar se inscrevendo no vestibular para Direito na então Universidade do Amazonas (UA). Em janeiro de 1977, fez o vestibular como “franca atiradora”, sem muito acreditar, e foi aprovada. Mas por que Direito? “Escolhi Direito pela minha vontade de fazer justiça”, diz Domingas. A família também tinha histórico de atuação na área jurídica.

“Passei no vestibular, e meu pai disse: ‘Você vai! Deixa o menino aqui e vai! Porque não é qualquer um que passa no vestibular, numa faculdade federal, e para o seu curso. Eu vou te dar uma ajuda de custo para pagar pelo menos um pensionato’. E foi como eu vim”, lembra. O filho tinha 3 anos de idade.

Na época, Domingas já trabalhava e ganhava um bom salário como professora em Boa Vista, mas teve que abdicar do emprego para estudar. De um salário de 4 mil da moeda da época, a renda dela caiu para 1 mil, da ajuda de custo oferecida pelo pai. “E desses 1 mil, eu pagava 900 só de pensionato”.

Jesus Nazareno Fontelles Laranjeira, pai de Domingas, defendia ideias modernas para a época. “O papai era arengueiro [briguento], que nem eu. Acho que puxei muito meu pai. Para as filhas, Jesus Nazareno desejava a independência. Era contra o casamento delas. Dizia que a mulher tinha que estudar e ser dona de sua vida. “Ele dizia: ‘não aceito esse negócio de homem mandando em vocês. Naquele tempo o casamento era assim. Aliás, até hoje. Agora, eu, nunca consegui ser submissa e me separei. Acabei, pelo lado torto, satisfazendo meu pai. Dou graças a Deus de ter ficado só. Não sei se aguentaria um velho, não”, afirma.

Aos 90 anos, Jesus Nazareno faleceu este ano, levado pela “Covid nojenta”, como diz Domingas.

Mulher separada

Criada para ser independente, Domingas conviveu com preconceito e discriminação. “Naquele tempo as pessoas julgavam muito, por ser separada, inclusive dentro da minha própria família”. Mas a discriminação não chegava a abalar a autoestima. “Eu não me importava muito, não. Sempre fiz o que quis, o que me deu vontade. Nunca fui de viver noitadas, mas tinha esse preconceito. Na faculdade, era terrível”. Ela, então, era discreta. Mas nunca deixou de namorar. “Sempre fui namoradeira, mas nunca fiz propaganda dos meus namoros”. Formou-se em 1981 e foi a segunda mulher da história a ser oradora de uma turma de Direito.

Carreira

A carreira na assistência jurídica à população teve início em 1985, quando foi contratada para o Departamento de Assistência Judiciária, da Secretaria de Justiça. Como advogada de ofício, a função de Domingas era a mesma que hoje faz pela Defensoria – levar acesso à Justiça aos que não podem pagar uma defesa particular. Entrou contratada e foi aprovada em um concurso realizado anos depois.

“Eu atuava na área criminal e trabalhista, que, naquela época, a gente atendia. Então, eu tinha que me dividir”, conta Domingas, lembrando de um tempo em que eram 25 advogados de ofício para o Estado.

Durante o processo de criação da Defensoria, Domingas teve papel importante junto aos deputados estaduais para definir os termos da lei que seria aprovada na Assembleia Legislativa do Estado. Com a criação da instituição, em 1990, optou pela carreira de defensora pública.

Ao longo da carreira, lutou por aumento salarial para a categoria, batalhou para que fosse realizado o primeiro concurso com os defensores públicos aprovados sendo nomeados e atuou em causas relevantes, como a que garantiu a quitação de imóveis no sistema financeiro de habitação no início dos anos 2000 para centenas de famílias.

Na administração da Defensoria, Domingas diz que “só” foi diretora administrativa e subdefensora geral, porque sempre foi muito briguenta. “Ninguém me aguentava, não. Eu sempre quero as coisas corretas, aí questiono. Mas não me arrependo. Sou respeitada”.

Como defensora pública, Domingas atuou no Criminal, Trabalho, e depois se fixou na área Cível. “Gosto mais do Cível. Digo que é a elite dos atendimentos na Defensoria Pública. Porque mesmo que você venha com a mesma situação, são processos e defesas diferentes. A história que você vai contar e a forma como você vai defender é diferente”, analisa.

Em 36 anos de assistência jurídica gratuita à população, Domingas diz que tem uma dívida consigo mesma: não ter atuado em um júri popular. “Quando consegui um júri que seria relevante, era um infanticídio – a mãe matou o bebê. Chegamos a iniciar o processo, mas quando chegou a hora de ela depor, ninguém achou mais a mulher. Perdi minha oportunidade de fazer um júri”.

E assim, com ou sem júri no currículo, a menina “Yáyá”, que deixou os trabalhos domésticos na zona rural para conquistar independência pela educação, se tornou a “Dra. Domingas”, figura emblemática da história da Defensoria no Amazonas.

A seguir, confira trechos da entrevista com a defensora pública Domingas Laranjeira:

Para a senhora, como é ter acompanhado toda a trajetória da Defensoria?

Vi a Defensoria nascer. Acho que houve uma evolução muito grande no atendimento e eu me orgulho de ter participado de todas essas etapas, desde a criação. Depois, me orgulho de ter feito o primeiro concurso. Eu que recebi e treinei as primeiras turmas de defensores. Sinto orgulho de ter feito isso. Mas acho que não fiz mais do que minha obrigação, como funcionária pública, como bem acertou a Constituição Federal, de colocar o termo servidor público, e nós estamos aqui para servir a população.

Para a senhora, ser defensora pública, é ser servir a população?

É ser servidor, é servir a população. Porque, se não há população carente, não há necessidade da nossa existência. Nós só existimos por eles. Então, acredito que temos que recebê-los sempre com tapete vermelho e fazer o possível e o impossível por eles. Porque nós somos a última esperança na sede de justiça que eles têm. Tenho feito isso, aconselho minha equipe a fazer sempre isso. Tratar as pessoas com dignidade.

Que processo deu mais trabalho?

O processo que mais me deu trabalho foi o primeiro que peguei na Defensoria Pública. Era uma senhora que brigava com o vizinho por 50 centímetros. Ela dizia que uma marquise tinha avançado no terreno dela. Mas na verdade não tinha. Esses 50 centímetros de marquise rendeu um processo que demorou uns oito ou 10 anos. Nunca entraram em acordo.

Como a senhora se definiria, em poucas palavras?

Me definiria como alguém de coragem e atrevimento. Eu sempre fui muito corajosa e atrevida. Nunca tive medo. Digo sempre que tenho medo só de Deus, e porque eu não conheço ele. Porque, na hora, se pudesse, ainda iria discutir umas coisas com ele.

Por que não se aposentou?

Porque não sei fazer outra coisa, vou perder bastante dinheiro e, como estou bem, não vejo porque me aposentar. Eu fiz concurso, a vaga é minha e eu vou ficar aqui até fazer meus 75 anos. Com 75 anos a aposentadoria é compulsória. Só saio, se não morrer antes, ou ficar doente, com 75 anos. Mas não tenho vontade de me aposentar, não. Sempre trabalhei.

E quando não tiver mais jeito e a senhora tiver que se aposentar?

Se eu estiver viva, ainda, espero que meus filhos já estejam resolvidos, e gostaria de me desfazer de todas as coisas. Como que a gente acumula tanta coisa? Eu queria morar em um apart hotel. Chega lá, dorme, come e sai. Não tenho nada, não quero cuidar de nada, não quero mais lavar nem um copo. Quero achar já uma calcinha descartável, para não ter que lavar. Pode ser que daqui para lá já tenha. Eu queria viver assim quando me aposentasse. Com meus filhos já resolvidos, eu desprendida de tudo, ir ver os netos só para dar beijinho e tchau-tchau e pronto. Mas não sei se vou viver até lá, não. Ah, e isso com saúde, porque sem saúde e independência…tenho pavor de perder minha independência.

Sempre foi independente?

Sempre fui muito independente e não gosto de esperar fulano fazer as coisas. Eu quero, eu mesma resolvo. Às vezes, meu filho se aborrece. “Mamãe, a senhora não pode mais tá fazendo as coisas”, ele diz. Eu digo: ‘não me faz mais velha do que eu já estou. Deixa eu fazer o que eu quiser, do jeito que eu quiser’. Às vezes, estou no shopping com ele e vejo o pessoal puxando aqueles velhinhos e velhinhas e digo: ‘Quando eu estiver desse jeito, não me deixa sair de casa’. E ele diz: o que eu posso fazer? Digo: ‘Me amarra!’

A senhora está sempre bem arrumada. Sempre gostou de se arrumar?

Sempre andei arrumada, enfeitada. Adoro me enfeitar! A única coisa que não tenho muito apego é com tratamento de cabelo, porque quando eu era jovem meu cabelo era muito bom, cabelo de índio mesmo, bem escuro. Sempre usei cabelão comprido. Não precisava ter muito cuidado. E agora, é só pintar. É como eu digo, as mulheres não ficam grisalhas. Elas ficam louras. Elas não envelhecem, ficam louras.

E esse enfeite que a senhora usa na testa?

Ah, isso já faz parte da minha indumentária desde 1997. Começou com uma brincadeira de um colega que foi à Índia. Lá eles usam isso. Meu amigo explicou que dependendo da cor da pedra, se sabe se a mulher é casada, se é virgem. Tem esse significado na Índia. Gostei, fez bem para mim. Hoje já ficou uma marca registrada. Se saio sem isso, que se chama terceiro olho [ou bindi], perguntam. Tenho uma coleção, amigas trazem para mim de presente. Às vezes as pessoas me perguntam se sou descendente da Índia, se sou indiana. Eu digo: ‘Não. Sou indígena mesmo. Estou mais para índia.

Texto: Márcia Guimarães

Fotos: Clóvis Miranda e Acervo pessoal/DPE-AM

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