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Câmara idealizada pela Defensoria Pública transforma vida de família manauara que lutava por diagnóstico de menino

Câmara de Resolução Extrajudicial de Litígios gera economia milionária aos cofres do Estado, proporciona atendimento humanizado e descomplica a saúde pública, garantindo direitos a quem mais precisa

Uolly Marvin Ferreira Pedrosa, hoje com 10 anos de idade, nasceu prematuro. Durante o parto, ele teve alteração cardíaca, falta de oxigenação e precisou ser reanimado. Enquanto o filho crescia, a mãe, Raimunda Nonata Pires Ferreira, percebeu que havia algo de diferente no desenvolvimento dele, um atraso cognitivo acompanhado de uma série de outros problemas de saúde. 

Contudo, a família não conseguia saber o que de fato Uolly tinha. Até obter o diagnóstico, necessário para tratamento correto e para o acesso a uma série de serviços e benefícios garantidos na lei, foram anos de uma longa e exaustiva jornada de porta em porta de hospitais. 

A situação só começou a mudar de fato quando Raimunda resolveu buscar a ajuda da Defensoria Pública do Amazonas (DPE-AM) para ter acesso, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), às consultas médicas e exames necessários para saber o que filho tinha e tratar corretamente. 

Após o atendimento inicial, a equipe do Núcleo de Defesa da Saúde (Nudesa) da DPE-AM a encaminhou para a então recém-criada Câmara de Resolução Extrajudicial de Litígios da Saúde (CRELS). 

“Eu fui uma das primeiras pessoas atendidas pela câmara. É muito bom o trabalho, porque promove a resolução de demandas prioritárias e emergenciais. Agiliza o atendimento”, relata dona Raimunda, moradora do bairro Aliança com Deus, na Zona Norte de Manaus, com um ar de satisfação. “No meu caso, eu já tinha batido em muitas portas”, acrescenta ela. 

O trabalho da CRELS garantiu que Uolly fosse atendido pelos médicos especialistas, realizasse todos os exames necessários e fosse diagnosticado com deficiência intelectual leve, transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), além de transtorno da articulação da fala, entre outros problemas de saúde. 

Medicado de maneira adequada, o menino apresentou evolução significativa no desenvolvimento e melhora dos sintomas. O diagnóstico médico também garantiu, entre outros direitos, que o menino receba o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a gratuidade para ele e um acompanhante no transporte público urbano e descontos nas tarifas de água e energia. 

Para o defensor público Arlindo Gonçalves Neto, coordenador do Nudesa e idealizador da CRELS, a câmara é um ponto de virada no atendimento da rede pública de saúde do Amazonas e seu principal ganho é humano.

Isso é o que move o Núcleo de Defesa da Saúde. Quando a pessoa procura a Defensoria Pública, ela quer ter acesso à saúde. Na verdade, o processo judicial é a última via para aquele indivíduo. Então, nada melhor do que a CRELS está fazendo atualmente, que é recepcionar essas pessoas e inseri-las dentro do fluxo, de modo a garantir um atendimento 

Arlindo Gonçalves Neto, defensor público
O defensor Arlindo Gonçalves Neto, idealizador da câmara

A saga até o diagnóstico

Mãe de outros quatro filhos, Raimunda conta que, à medida em que ia crescendo, Uolly foi apresentando problemas comportamentais como resistência ao contato com outras pessoas. “Ele teve atraso no desenvolvimento. A primeira dentição foi crescer aos dois anos e ele também tinha muito sangramento nasal”. 

Percebendo que a criança precisava de um tratamento adequado, a mãe iniciou assim uma cruzada na rede pública de saúde em busca de respostas e soluções para garantir qualidade de vida a Uolly. 

Havia a suspeita de problemas neurológicos. “Ele tinha algum problema, mas qual? No começo, eu achava que ele não escutava direito. Para ele não entender, para ele não responder, deveria ser isso. Ele tinha também um problema na fala e para se alimentar. Tudo que engolia, ele vomitava. A gente forçava e se desesperava muito até se adaptar”. 

O pediatra, então, pediu uma investigação com neurologista. Entretanto, foram anos tentando a marcar a consulta com o especialista e, depois, para a realização de exames como eletroencefalograma. 

“Eu fazia o que eu podia fazer dentro dos meus dos meus limites para dar essa qualidade de vida para ele. Mas, tinha muita coisa que dependia do diagnóstico correto, dos laudos, que dependiam do sistema de saúde, que é bom sistema. E eu queria contribuir com esse sistema, mas não tinha uma boa orientação dentro da rede”, afirma. 

Sem saber o que de fato Uolly tinha, Raimunda conta que a família se sentia completamente perdida. “Antes do diagnóstico, quando não era medicado, ele não tinha concentração, não tinha noção do tempo, não sabia se era de manhã, se era de tarde. Ele esquecia as coisas com muita facilidade, voltava da escola sem lembrar do que foi ensinado, com o caderno em branco”. Para conseguir alfabetizá-lo, a mãe diz que foi “uma verdadeira luta”. 

Enquanto isso, os exames não saíam. “Foi um grande entrave. Vai daqui para ali, volta depois de seis meses, começa tudo de novo. E eu já sem dinheiro para pagar passagem, só com o Bolsa Família”, recorda. 

Raimunda contou que, sem ter como comprovar os problemas do filho, era tachada de negligente na antiga escola do filho. “Reclamavam porque ele não foi para aula, mas eu não ia mandar o menino para a aula com nariz sangrando. Eu tinha que a toda hora estar me justificando”, conta ela, que se acidentou (caiu e fraturou a perna), o que só fez piorar a situação. 

“Eu fui ao Conselho Tutelar antes de ele vir atrás mim e expliquei por que não ia levar o Uolly na escola. Teve um dia que ele acordou e não conseguia mexer as pernas e teve que ser internado no Hospital João Lúcio. Aí, no dia seguinte, a conselheira conseguiu transferir ele para uma escola mais próxima de casa, porque a anterior era longe e tinha muita ladeira no caminho para ir a pé e ele andava na pontinha dos pés”.  

Ela já não sabia mais o que fazer. O desânimo só não era maior que a determinação da mãe em melhorar a vida do filho. 

Um atendimento que mudou tudo

Sem ter mais quem procurar, Raimunda viu uma reportagem sobre o trabalho da Defensoria Pública do Amazonas na televisão e decidiu marcar um agendamento. 

Na data agendada, ela compareceu no Núcleo de Defesa da Saúde, localizado no Centro de Manaus, onde recebeu um primeiro atendimento e foi encaminhada para CRELS. 

A Defensoria foi um lugar onde encontramos pessoas que escutaram nossa causa. Foi uma porta que se abriu em um momento de exaustão. É difícil a gente se sentir acolhido e foi o que eu tive na Defensoria e na câmara. Você percebe que a intenção deles é resolver onde tem falhas, tanto para o cidadão quanto para o próprio sistema de saúde

Raimunda Nonata, dona de casa

“Já nesse primeiro dia resolvi bastante coisa”, acrescenta.  

Com a orientação adequada e humanizada e o trabalho extrajudicial realizado pela CRELS, Raimunda, Uolly e a família conseguiram “desatar os nós” que travavam a busca pelo diagnóstico do menino.  

“Então, nesse atendimento da câmara, eu fui entendendo os caminhos, os prazos para exames, consultas, informações que ninguém dava nas unidades. Coisas simples até, mas que não havia orientação”, relembra. 

Raimunda diz que “essa assistência é uma ajuda importante para o cidadão, que para de ficar correndo de um lado para o outro sem conseguir resolver sua demanda, e acredito que é uma economia para o estado também”. 

“Eu fui bem recebida na câmara e percebi que havia boa vontade dos diretores de hospitais, também querendo fazer parte daquilo. Acredito que eles também têm muita boa vontade para fazer isso acontecer”, acrescenta. 

Após a intervenção da CRELS, Uolly foi atendido pelos especialistas, realizou todos os exames necessários e foi diagnosticado, entre outras coisas, com deficiência intelectual leve, transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), além de transtorno da articulação da fala. Ele segue sendo atendido pelo Centro de Atenção Integral à Criança (CAIC) Alberto Carreira, que oferece atendimento especializado. 

A mãe afirma que “ter o laudo ajudou muito em tudo”. “Na escola foi fundamental”, registra ela. “A vida dele melhorou muito. Hoje, ele tem a qualidade de vida que eu tanto queria que tivesse”, diz Raimunda. 

Uma demanda além da saúde

O coordenador da CRELS, Adalberto Thaumaturgo Júnior, explicou que a demanda da família de Uolly ultrapassava a questão da saúde em si. “Era também uma demanda social com vários aspectos. Na época, nossa assistente social fez a escuta qualificada dessa mãe e os encaminhamentos pertinentes”. 

“A partir disso, nossa equipe conseguiu destrinchar todas as situações e atuou tanto para garantir o acesso à rede de saúde, quanto aos benefícios sociais. O Uolly passou a ter um acompanhamento multiprofissional, com neurologista pediátrico, terapeuta ocupacional, com psicólogo, fonoaudiólogo e todas demais especialidades que ele necessitava”, ressalta. 

Economia de R$ 12,5 milhões em dois anos

Em dois anos de criação, completados neste mês de setembro, a CRELS atendeu um total de 4.278 demandas de 2.562 pacientes, tendo alcançado 92,5% de resolução e uma economia estimada de R$ 12,5 milhões aos cofres do Estado. 

O valor economizado é referente à resolução das demandas de forma extrajudicial, ou seja, sem que o caso vire um processo na Justiça, que tem um custo médio de R$ 3 mil. 

Como funciona

A CRELS é um instrumento para que o paciente tenha acesso aos serviços de saúde facilitado, pela via administrativa, sem necessidade de judicializar sua demanda. Ou seja, sem precisar ingressar com uma medida judicial para que ter acesso ao serviço ou medicamento que está pleiteando.    

“Em outras palavras, a pessoa procura a Defensoria Pública com a sua demanda de acesso à saúde e, encaminhada à CRELS, ela consegue resolver já na fase administrativa, em contato com profissionais das secretarias de Saúde, que estão aqui, sem a necessidade de uma ação na Justiça”, observa Arlindo Gonçalves Neto. 

A câmara abrange, hoje, demandas que envolvem consultas, exames, medicamentos e insumos padronizados oferecidos de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A partir de 2025, a CRELS passou a trabalhar também com demandas de medicamentos não incorporados ao SUS, que foram tratados em decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) nos Temas 6 e 1.234. 

Em breve, a câmara deverá atender demandas de saúde mental, cujo fluxo vem sendo ajustado com as secretarias de Saúde da capital (Semsa) e do Estado (SES-AM). 

A DPE-AM vem articulando também a ampliação da atuação da CRELS para abranger todos os serviços e produtos de saúde, incluindo cirurgias, tratamento fora do domicílio, entre outros. A ideia é que qualquer demanda por serviços e produtos de saúde que chegue ao Nudesa seja encaminhada primeiramente para a câmara. 

O defensor Arlindo Gonçalves Neto explicou que o termo de cooperação entre os órgãos deve ser atualizado para ampliar a abrangência de atuação da CRELS.  

Sobre a CRELS

Proposta pela DPE-AM, a CRELS foi criada em setembro de 2023 por meio do Termo de Cooperação 49/2023, firmado com o Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), a Defensoria Pública da União (DPU), o Estado do Amazonas e o Município de Manaus, por meio de suas secretarias de Saúde e procuradorias gerais (PGE-AM e PGM).   

Também aderiram à câmara a Justiça Federal – Seção Judiciária do Amazonas (SJAM), a Fundação Centro de Controle de Oncologia do Estado do Amazonas (FCECON), a Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado (FMT/HVD), a Fundação Hospital Adriano Jorge (FHAJ), o Ministério Público do Estado do Amazonas (MPAM) e o Ministério Público Federal (MPF).   

A câmara funciona no prédio do Nudesa, localizado na rua Barroso, 267, no Centro de Manaus. Por meio do termo de cooperação, a SES-AM, a Semsa, o TJAM e a PGE-AM cederam técnicos e estagiários que trabalham na CRELS. 

Texto: Luciano Falbo 

Imagens: Junio Matos/DPE-AM 

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