Guardiã da Defensoria transformou dificuldades em superação

Resiliência: capacidade de enfrentar e superar adversidades. É o velho “fazer do limão da vida uma gostosa limonada”. E resiliência é uma palavra que bem define Alcilene Araújo Cavalcante Saraiva, 56, ou Lene, a gerente de Patrimônio e Almoxarifado da Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM). Resiliência temperada com persistência e determinação. Assim é Lene.

A trajetória de garra que levou Lene à Defensoria começou em 1996, quando fugiu de um marido violento, levando os três filhos e apenas alguns pertences. Lene é natural de Itacoatiara, município 176 quilômetros distante de Manaus, e encontrou na capital o abrigo para recomeçar a vida, depois do relacionamento abusivo.

“Eu era muito abusada. Todos os tipos de abuso que você possa imaginar. Eu tinha 23 anos. Tive que optar entre ficar com ele ou viver para criar meus filhos. E optei. Um dia resolvi deixar tudo e ir embora. Depois nunca mais vi ele, só soube que faleceu”, conta.

Com a ajuda de uma irmã, Lene fugiu com os filhos para Manaus. “Foi muito difícil. Eu estava muito debilitada”, lembra. Ela chegou a sofrer agressões físicas e era sempre ameaçada de morte pelo marido. Por isso, acredita que se não tivesse fugido, poderia não estar viva para contar a história.

“Eu queria trabalhar, porque até então eu vivia só para a casa. Eu já tinha o curso de Contabilidade, mas não exercia por conta dele. Ele não permitia. Eu vivia totalmente presa dentro de casa”. O marido tinha um ciúme doentio, que acabava o levando à violência.

Lene é gerente de Patrimônio e Almoxarifado da Defensoria Pública do Amozonas

Faxina com orgulho

Em Manaus, com a ajuda de um “anjo” que apareceu em sua vida, dona Luzia, a gerente de uma creche, Lene encontrou um lugar seguro para deixar os filhos enquanto trabalhava. Lene trabalhou fazendo faxina em casa de família para sustentar os filhos.

Ela diz que “faria tudo de novo se fosse preciso, porque é um trabalho digno como qualquer outro”. E assim foi, até que um dia, ao voltar para a creche para buscar seus filhos, a dona do estabelecimento ofereceu um emprego. “Na creche, eu trabalhava na administração e também ajudava com as crianças”, relembra.

Servidora pública

Tempos depois, Lene se inscreveu em um concurso para serviços gerais na Secretaria de Estado da Educação (Seduc) e começou a estudar em casa, porque não tinha como pagar um cursinho. Foi aprovada. Lene foi trabalhar em uma escola, mas ficou apenas um mês na função de serviços gerais. Um novo “anjo” cruzou seu caminho. Em conversas com Lene, uma supervisora soube da formação em Contabilidade. “Foi quando ela me deu oportunidade. E não se arrependeu”, conta.

Lene passou a trabalhar na secretaria do Centro de Educação de Jovens e Adultos (Ceja). O ano era 2002. O salário era pouco. Ganhava cerca de R$ 400. E nem sempre tinha dinheiro para ir ao trabalho. Morava próximo a um supermercado no bairro Ponta Negra, Zona Oeste, e ia andando até o Ceja, que fica na avenida André Araújo, Zona Centro-Sul. Coincidência ou não, mesma rua onde hoje Lene trabalha, na Sede Administrativa da DPE-AM.

“Eu saía de casa umas 6h. No primeiro dia, eu confesso que foi bem difícil, porque eu achava que não ia chegar. Acho que levava de uma hora e meia a duas horas caminhando. Eu tinha que optar. Às vezes eu tinha dinheiro para duas passagens, mas como eu saía tarde da escola, deixava o dinheiro de uma passagem para voltar e o da outra, eu deixava para os meninos”, relata.

Lene é a líder da equipe do Patrimônio e Almoxarifado

Defensoria

A história de Lene com a DPE-AM começou em 2003, quando ela foi relotada para a instituição. O início não foi nada fácil.

“Quando cheguei na Defensoria, a diretora de Administração disse: ‘eu sei que você trabalhava na secretaria, você é toda bonitinha, mas aqui você vai limpar o chão’. Eu disse: ‘não tem problema, eu fiz concurso para isso’. Eu não vou sair do salto. Posso estar com balde e vassoura na mão, mas do meu salto eu não saio”, conta.

Em 2005, a gestão mudou e veio a oportunidade de trabalhar no Almoxarifado, substituindo o responsável pelo setor, que estava de saída e a indicou ao cargo. Faz 18 anos que Lene está na Defensoria e há 16 ela comanda o Almoxarifado. “Eu vi a Defensoria crescer”, comenta.

Lene recebeu “carta branca” do diretor administrativo para organizar o setor e começar a transforma-lo no que é hoje. Ela ouviu que poderia fazer do Almoxarifado a sua casa e fez.

A gerente do setor conta que o Patrimônio e Almoxarifado faz muito mais que receber e distribuir material. Entre as tarefas do setor, estão avaliar a depreciação, fazer inventários e agora, até mesmo o leilão do que está depreciado.

São seis servidores na equipe da Gerência. Um cuida dos processos administrativos, que chegam a 19 por dia, enquanto outros cuidam do tombamento (o instrumento de reconhecimento e proteção do patrimônio), recebimento, distribuição do material e das visitas aos polos do interior. Há ainda um responsável pela logística, além de Lene, que toma conta de todo o fluxo de trabalho.

Lene acompanhou todo o crescimento da instituição e se sente parte desse processo. “Me sinto como uma guardiã do bem público, eu e minha equipe, porque isso aqui é dinheiro nosso. Quando vejo alguém fazendo algo que não deve com um móvel, eu chamo atenção. É dinheiro público, é dinheiro nosso. Eu amo o que eu faço. Tenho uma paixão pelo meu trabalho. Não consigo mais me ver sem a Defensoria”, afirma.

Os anos de casa e a função rendem boas piadas. “Estou na Defensoria há 18 anos. Já sou um patrimônio da Defensoria, podem colocar a plaqueta de tombo”, brinca Lene, entre risos.

Lene sempre gostou de estar bem vestida para o trabalho e não dispensa o salto alto

História de amor

No início de 2020, Lene perdeu o segundo marido, Waldemir Cavalcante, o grande amor de sua vida. Ele teve um caso grave de Covid-19 e não resistiu. “Ele foi três vezes para o hospital. Na quarta vez, ele internou. Depois de sete dias, faleceu. Foi tudo muito rápido, uma coisa que eu não esperava”, lembra.

Ela ainda conversou com o marido no dia do aniversário dele, em uma videochamada. Dois dias antes da morte, uma enfermeira ligou para Lene, afirmando: “ele mandou ligar para você, para dizer que você é o amor da vida dele”.

“Costumo dizer que o primeiro marido foi um sapo e o segundo foi um príncipe. Sabe aquele marido, que se ele levantasse primeiro, ia lá no banheiro e colocava pasta de dente na minha escova, e se eu levantasse primeiro, eu fazia a mesma coisa? Era uma cumplicidade, uma parceria. Estava casada com ele há 16 anos. Ele participou da criação dos meus filhos, é o pai deles”, comenta.

Recomeçar

Com a perda do marido, Lene vive um recomeçar. Não dirigia e agora está terminando as aulas na autoescola. Era sempre Waldemir quem dirigia e ela não via necessidade de aprender. Lene quer aproveitar a vida estável que conquistou, para descansar e curtir os três netos.

Nesse recomeçar, está a realização de um sonho planejado com o marido. É a conclusão do chalé que estavam construindo na margem esquerda do rio Amazonas, na Costa do Tabocal. Ela havia abandonado o projeto, mas o retomou após um sonho. “Ele me abraçava, dizia que estava com saudade, apontava para o chalé e perguntava porque eu não tinha terminado. Agora estou dando continuidade”, descreve Lene.

Assim como supera a pouca estatura com elegância e sapatos de salto alto, Lene vem construindo sua história com a superação de todas as adversidades. E o salto alto? “Isso são anos de prática. Eu subo e desço escada rapidinho, literalmente no salto. Tudo o que faço é de salto. Se eu vier de tênis, acho que a minha perna dói”, diz Lene, do alto de seu 1,54 m de altura.

É como fazer do azedo do “limão” da vida, uma doce “limonada”.

Lene, é a guardiã do patrimônio da DPE-AM há 16 anos

Fotos: Clóvis Miranda/DPE-AM

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