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‘Somos trabalhadores’, dizem ribeirinhos de Manicoré após operações truculentas da PF contra o garimpo

Defensoria Pública coleta depoimentos e informações sobre os impactos das operações com uso de força bélica na destruição de balsas de extração de ouro, e contabiliza prejuízos sociais, econômicos, ambientais e na saúde mental da população vulnerável

Luiz Gonzaga Nascimento da Silva, hoje com 55 anos de idade, trabalha desde os 12 na extração de ouro no rio Madeira. Nos últimos anos, ele diz que a atividade vem se tornando cada vez mais necessária para os ribeirinhos da região em função das enchentes cada vez mais severas, que destroem as plantações, a segunda alternativa possível de geração de renda na região.  

Seu Gonzaga conta que, na mesma medida em que cresceu a dependência econômica da atividade, a fiscalização e o combate ao garimpo na calha do Madeira, que foi levado à completa ilegalidade a partir de 2017, passaram a ser cada vez intensos e agressivos.

O ribeirinho foi uma das pessoas ouvidas pela Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) durante uma agenda de atividades em Manicoré ao longo desta semana. Os defensores públicos Ricardo Paiva e Theo Costa, integrantes do Grupo de Trabalho (GT) “Teko Porã – Vida Digna”, desembarcaram no município para colher relatos e informações acerca dos impactos das recentes operações da Polícia Federal (PF) que explodiram balsas no trecho do rio entre Manicoré e Humaitá.

“Eles (agentes da PF) vêm, explodem e dizem ‘nós estamos expulsando os invasores, os garimpeiros’. Não! Eles não estão expulsando ninguém. Cada uma pessoa dessa é moradora da margem do rio Madeira. Somos nós”, defende Gonzaga. “Eu não sou de nenhum outro lugar. Eu nasci e me criei aqui e nunca me mudei para canto nenhum”, acrescenta.

“Eles dizem que vêm proteger indígena do pessoal de fora, mas os indígenas daqui trabalham no garimpo. Aqui na nossa região, tanto os indígenas como os ribeirinhos, eles que são os garimpeiros. Aqui não tem ninguém de outro estado não, é tudo daqui, amazonense”, afirma.

Luiz Gonzaga conta que, durante uma operação em 2023, os policiais explodiram quatro bombas em sua balsa. “No outro lado do rio, o helicóptero aterrissou em cima da comunidade Pandegal para explodir bomba. Lá as crianças andavam doidinhas, correndo para o mato, com medo, sem saber o que fazer”, relembra.  

O ribeirinho conta que os agentes da PF abandonaram uma banana de dinamite que não explodiu dentro de uma balsa. Crianças da comunidade, sem saber do que se tratava, acabaram manuseando o artefato. “Na brincadeira, colocaram até debaixo do banco da voadeira do rapaz e cobriram com o pano. Quando o cara chegou lá, quase que dá um troço nele”, conta.  

‘Foi tudo pro fundo’

O sítio de Gonzaga fica em uma área de várzea. Para acessá-lo durante a seca, é necessário subir um barranco de aproximadamente sete metros de altura.  

Apesar disso, nos últimos anos, as grandes enchentes têm conseguido ultrapassar essa barreira e subir ainda mais um metro após o barranco, alagando completamente as plantações de banana, cacau, entre outras culturas, assim como o galinheiro e chiqueiro, além da própria casa do ribeirinho. “Ano passado, perdi todo meu cacau. A colheita foi pro fundo. Matou tudinho”, diz.

A situação, segundo ele, é uma demonstração do maior prejuízo causado pela destruição de balsas durante as operações da PF. “A gente se utiliza as balsas para acudir as crias (porcos, galinhas) e para morar com as famílias em cima. O assoalho da casa vai tudo para o fundo. É essa a situação da gente aqui. Aí, muita gente não acredita que a gente utiliza a balsa como casa de moradia, mas a verdade é essa: a gente utiliza, sim, a balsa como casa de moradia para a gente quando a água vem”, afirma.

‘É muito triste’

Mãe de dois homens que trabalham com garimpo e que tiveram suas balsas explodidas pela PF, dona Iassis do Carmo também conta que as grandes cheias têm sido mais frequentes desde 2014, invadindo e destruindo as plantações, e que isso tem levado ao aumento da dependência das famílias da extração de ouro do rio.  

Moradora da comunidade Santo Antônio do Pau Queimado, Iassis lamenta a agressividade das ações de repressão ao garimpo. “Essas operações prejudicam muito eles, que têm família. É um muito triste”, diz.

“Na época da cheia, os meus filhos vieram com suas famílias morar aqui em casa, onde é um pouco mais alto, porque a casa deles foi pro fundo e não tinham mais balsas porque tinham destruído em uma operação”, recorda.

“Quando vi tocarem fogo nas balsas dos meus vizinhos eu chorei muito”, relembra. “Eu queria que os governos organizassem o garimpo em cooperativas”, conclui a agricultora.

‘Ninguém quer garimpar, é necessidade’

Pai de um menino de três anos, Isaías Lopes conta que perdeu tudo. A balsa dele foi uma das 277 destruídas durante a operação Boiúna, realizada pela PF entre os dias 10 e 22 do mês passado.  “Foi um momento de terror, nunca tinha passado na minha vida”, lembra.

A maior dor, segundo ele, é moral. “Os policiais chegaram lá e começaram a tratar a gente como bandido. E eu trabalho no garimpo desde meus 15 anos e eu nunca roubei nada de ninguém. Chegaram, mandaram sair da balsa e começaram a atirar bomba, bala de borracha, expulsando a gente, derramado o combustível que a gente tem. A gente ia pedindo para tentar tirar pelo menos a roupa da gente, para tentar salvar alguma coisa”, relata.

“Naquela hora, o que eu pensava é na minha família. Aquele era meu único meio de trabalho para sustentar minha família. É do garimpo que a gente sobrevive. Eu tinha banana plantada, mas perdi na cheia. Perdemos tudo aqui. Graças a Deus não perdemos nossa vida, mas só que essa situação é muito ruim, de chegaram e tratar a gente como bandido. Se a gente está nesse serviço é porque a gente precisa muito, essa é a realidade”, acrescenta.

Isaías faz questão de dizer que não tem financiador e nem envolvimento com o tráfico de drogas. “Eles vêm e queimam nossas balsas e chamam a gente de traficante. Mas, eles não acharam droga na minha bolsa, não acharam nada e mesmo assim resolvem queimar. Eu trabalho para comprar minhas coisas, entendeu?  Eu comecei a trabalhar em garimpo com 15 anos”, diz.  

“Dó demais isso aí de chegar e falar que a gente é bandido, isso aí é doído. A gente depende desse serviço. Eu não estudei, não tenho o terceiro ano completo porque minha mãe não tinha condições e eu tive que sair do meu estudo para trabalhar e me sustentar. Por isso que a gente está nessa luta aí”, afirma.

O garimpo, diz ele, é um trabalho “muito sofrido”. “Na realidade, ninguém quer estar ali garimpando. Você acha que eu não queria estar lá em casa com a minha família enquanto estou lá no meio daquele rio, pegando temporal, chuva. Não é um serviço bom. A gente faz porque precisa”, conclui.

Garimpeiro é pai, filho, marido, professor…

Relatos de professores da Escola Municipal Santo Antônio corroboram a afirmação de Luiz Gonzaga de que os garimpeiros são os próprios ribeirinhos e não invasores.  

A professora Marina Viana Pinto, por exemplo, é categórica: “Os garimpeiros não são bandidos, são trabalhadores das comunidades, pais dos nossos alunos”.  

Os maridos das professoras Sandra Regina Lopes e Bruna Ribeiro atuam na extração de ouro e tiveram seus equipamentos destruídos pela PF. “Agora, que os nossos maridos não podem mais trabalhar no garimpo, acaba que nós que trabalhamos dando aula acabamos ficando sobrecarregadas. Fica só para a gente sustentar a família, com alimentação, transporte”, observa Sandra Regina.

Ex-garimpeiro, o professor Daniel Leite conta que chegou a passar mal durante a operação do dia 15 de setembro. “Eu fiquei muito indignado. Eu vi de perto a operação. Os trabalhadores não podiam fazer nada. É diferente de uma guerra, porque só um lado está armado. Foi triste e cruel”, disse.  

Ele conta que além de trabalhar com o garimpo antes de ser professor, continuou a trabalhar na extração de ouro durante os anos iniciais do magistério, quando trabalhava em um só turno. “E se eu deixar de ser professor um dia, eu vou voltar a ser garimpeiro. Acredito que esse garimpo não polui mais do que as grandes indústrias”, afirma.

Impactos no ambiente escolar

As operações, com voos rasantes de helicópteros com agentes empunhando armamento de grosso calibre à mostra, as explosões cinematográficas das balsas, disparos de balas, bombas de gás e spray de pimenta causaram pânico nas crianças e nos profissionais da educação.

“Pelo que pude perceber, as crianças ficaram muito assustadas, principalmente com as explosões. Os familiares todos correndo preocupados com suas balsas. Moramos em área de várzea e todo ano a água acaba com tudo, banana, roça. A renda que eles têm é do Bolsa Família. Seiscentos reais não é suficiente. Então, não tem outra renda além do garimpo”, afirma a professora Mariana Viana.

“As crianças chegavam e falavam ‘e agora, professora, com o que os nossos pais vão trabalhar?’. Aqui só tem garimpo e agricultura. Mas, com as enchentes, não têm outras alternativas”, afirma Sandra Regina.  

“Quando teve as explosões, fomos pegos de surpresas. Ficamos tentando controlar as crianças e não sabíamos o que fazer porque não sabíamos qual era o plano deles. As crianças ficaram agitadas. Foram momentos de medo. Até para ir para a beira do rio a gente tinha medo por causa das bombas. Foi desesperador, sem dó nem piedade”, recorda Bruna Ribeiro.  

A gestora escolar Alcilândia Lopes salienta que as operações têm reflexo direto nos índices de aprendizagem. “Essa última operação aconteceu dias antes das provas do CAEd (Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação). No ano passado, a ação também foi na mesma época de prova. O que nós vemos é que a média cai por conta do abalo psicológico”, destaca.

Conforme os relatos de professores, a situação na Escola Municipal Sagrado Coração de Jesus, localizada na comunidade Democracia, é semelhante.

Raimunda Francinete Passos de Jesus e Elcivan Sousa da Costa contam que as operações tiram o foco dos alunos. “Eles ficam preocupados”, diz Raimunda.  

“Quando eles (agentes da PF) vêm fazer operação, a gente observa também a ausência dos alunos, porque ajudam os pais a tirar o motor da balsa, desmontar a balsa para afundar. Há essa ausência da sala de aula”, observa a coordenadora pedagógica Sebastiana Oliveira.

Igreja repudiou operação

Natural de Humaitá, o padre João Nascimento, da paróquia de Maria Auxiliadora dos Cristãos, fala do assunto com propriedade. O pai dele foi, por muitos anos, garimpeiro. “Hoje com 81 anos, ele já não exerce mais essa profissão. Mas, desde quando eu era criança, me lembro que o meu pai trabalhava no garimpo. E se hoje, graças a Deus, eu estou, onde eu estou, é também pelo esforço e trabalho do meu pai, que tirava o nosso sustento do garimpo. Então, ao contrário do que muitas pessoas falam que ali são pessoas que trabalham com o narcotráfico, na verdade são pais de família, pessoas de bem”, afirma.

O religioso assinou, juntamente com outro padre e bispo da diocese da região, uma nota de repúdio contra a operação do dia 15, que ocorreu durante as festividades da padroeira do município.

Relatos vão embasar futuras medidas

O defensor Theo Costa diz que os relatos colhidos nesta semana nas comunidades de Manicoré são semelhantes aos coletados anteriormente em Humaitá, em relação aos danos que foram causados pelos excessos da operação da Polícia Federal, como prejuízos ao rendimento escolar dos alunos.  

“Entre outras questões, verificamos que o transporte escolar para a escola que fica na comunidade Democracia foi prejudicado após a operação do dia 15 de setembro. Havia receio de circular no rio com crianças em meio a possíveis novas ofensivas da PF com explosivos e outros materiais bélicos”, observa.

“Muitas dessas balsas também servem de moradia e, quando elas são destruídas, muitas crianças e adolescentes precisam ajudar a sua família a retirar seus pertences, que foram para o fundo do rio, um trabalho que dura dias. Em vez de estar nas escolas, essas crianças acabam tendo que auxiliar os seus pais nesse momento. É um transtorno também para os professores, que depois precisam, de alguma forma, compensar esse tempo perdido’, complementa Costa.

De acordo com o defensor Ricardo Paiva, a partir das coletas dos relatos, “a Defensoria Pública vai construir um plano de atuação e provavelmente vai pedir a reparação de todos esses danos que foram identificados, bem como a reversão disso em equipamentos para a população ribeirinha”.  

“O que buscamos é que o assunto seja discutido e que haja algum tipo de controle nessas operações, que muitas das vezes tratam pessoas da comunidade, os ribeirinhos, como verdadeiros bandidos, o que não corresponde à realidade”, conclui.

O prefeito de Manicoré, Lúcio Flávio, agradeceu a presença do GT Teko Porã no município. A prefeitura deu suporte logístico durante as visitas às comunidades ribeirinhas. “Eu vejo com muito respeito a coragem da Defensoria de vir aqui com a equipe para colher as informações verdadeiras do que aconteceu, para que os defensores possam tomar medidas jurídicas em defesa do reparo dos danos causados à população de Manicoré, que sofreu muito com tudo isso”, declarou.

Sobre o GT Teko Porã

O GT “Teko Porã – Vida Digna” vem acompanhando a situação no rio Madeira desde julho deste ano.

Durante as primeiras visitas às comunidades do Madeira, antes das operações de setembro, a DPE-AM constatou que os mais afetados pelas ações da PF são os pequenos, ou seja, o garimpo artesanal e em pequena escala, praticados pelos próprios moradores das comunidades do entorno do rio, pessoas altamente vulneráveis.

Conforme a DPE-AM, as ondas de choque das explosões causam mortandade em massa de peixes, tartarugas e outros animais silvestres. O vazamento de diesel das balsas destruídas contamina a água, tornando-a imprópria para consumo.

Levantamento feito pela DPE-AM mostra que a PF, com o aval da União, já lançou mais de 1.500 bombas em operações contra balsas.

No início de setembro, a Defensoria Pública protocolou ações no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) para que a União suspendesse o uso de artefatos explosivos nas operações. Os pedidos foram negados e a DPE-AM recorreu.

Na terça-feira (7), a Defensoria protocolou uma recomendação ao Senado Federal para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a apurar possíveis excessos e abusos de autoridade durante as operações.

Sobre o nome

Teko Porã, que em tupi-guarani significa “belo caminho” ou “bem viver”, é uma filosofia presente em diversas culturas indígenas da América do Sul, especialmente os povos Guarani.

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