A Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) subsidiou decisão da Justiça Estadual que considera ilegal a venda de cartão de crédito consignado a clientes de instituições financeiras. A decisão foi tomada pelo pleno do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), no julgamento de um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), em que a Defensoria atuou em favor de todos os consumidores, na qualidade de custos vulnerabilis (Guardiã dos Vulneráveis). O processo foi motivado pela grande quantidade de ações envolvendo cobranças indevidas com cartão de crédito consignado e de divergências de entendimento nas decisões da Justiça em torno da questão. O IRDR teve como objetivo a fixação de tese jurídica pelo TJ-AM sobre a legalidade, ou não, dos contratos de cartão de crédito consignado.
A Defensoria interveio para defender a ilegalidade dos cartões de crédito consignado em razão da incidência de juros abusivos e de “venda casada”, e realizou sustentação oral durante o julgamento, ocorrido na última terça-feira (1). Em seu voto, seguido pelos demais membros do Tribunal Pleno, o desembargador relator do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, José Hamilton Saraiva dos Santos, julgou procedente o IRDR para firmar as teses defendidas pela Defensoria, que agora irão nortear as decisões tomadas em processos sobre cartão de crédito consignado.
“A falta ou precariedade de informações e esclarecimentos por parte das instituições financeiras fazem com que o consumidor seja induzido a imaginar estar contratando um empréstimo consignado, como qualquer outro, e que o cartão se apresenta como valor agregado de que pode ou não fazer uso. Assim, os consumidores só percebem que não estão diante de um empréstimo consignado simples, após anos de pagamento, quando já pagaram duas ou três vezes o valor solicitado e ainda resta um saldo devedor exorbitante e, o que é pior, para pagamento à vista”, disse o subdefensor geral, Thiago Nobre Rosas, em sua manifestação oral durante o julgamento do IRDR.
Na prática, o que vem ocorrendo é que, em um primeiro momento, o consumidor vai à instituição financeira com o objetivo de obter um simples empréstimo consignado. O banco, por sua vez, realiza outra operação, a contratação de cartão de crédito com reserva de margem consignável (RMC).
Através dessa outra operação, muitas vezes desconhecida pelo consumidor, credita-se na conta do interessado o valor total do empréstimo pretendido, antes mesmo do desbloqueio do cartão de crédito e sem que seja necessária, na maioria das vezes, a utilização do cartão. Com isso, no mês seguinte, a cobrança do pagamento integral do montante emprestado é feita na fatura do cartão.
Se o consumidor pagar integralmente o valor cobrado, nada mais será devido. Mas se não o fizer, é descontado em folha apenas o valor mínimo desta fatura (o equivalente a 6% do total da fatura) e, sobre a diferença, incidem encargos rotativos, muito superiores aos praticados pelo mercado em se tratando de consignados em geral.
Vale ressaltar que o consumidor, na quase totalidade dos casos, não tem acesso a informações básicas sobre a operação realizada, tais como, data de início e nem de término das parcelas, percentual de juros incidente ou o custo efetivo com e sem juros. Ressalta-se também que o consumidor que busca um empréstimo, em quase a sua totalidade, não tem meios de pagar o valor total de uma vez só, e que os valores são debitados diretamente de sua conta, por se tratar de empréstimo consignado. Portanto, não há então como escapar da “armadilha financeira”.
‘Bola de Neve’
Em sua manifestação, a DPE-AM destacou o caso de um consumidor aposentado atendido pela Defensoria que procurou uma instituição financeira com o objetivo de obter empréstimo consignado. Após alguns meses descontando regularmente o empréstimo, ele recebeu, em sua conta bancária, um novo crédito, no valor total de R$ 3.992,00, sem saber que se tratava de um “saque” de cartão de crédito diretamente na conta. A partir de outubro de 2014, o consumidor começou a receber os descontos em sua aposentadoria, no valor de R$ 220,87.
Ocorre que os contratos firmados pelo consumidor não traziam informações financeiras básicas, tais como, valor total a pagar e número e periodicidade das prestações, em total desrespeito ao que preconiza o Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Após o pagamento de 59 parcelas durante cinco anos, totalizando R$ 12.781,59, ou seja, mais do que o triplo do valor original emprestado, ainda restava um saldo a pagar de R$ 3.200. Na prática, após cinco anos de pagamentos, do valor emprestado originalmente (R$ 3.992,00) foi amortizada apenas a quantia de R$ 722,99, o que representa 18% do valor original. No período, portanto, foram pagos juros de R$ 12.058,60.
“Nesta sistemática, o assistido precisaria de décadas para quitar a sua dívida. A lesividade do contrato em prejuízo do consumidor é evidente, prevalecendo-se a instituição financeira de sua posição de superioridade contratual. Há, além disso, outro fato que contribui para a caracterização da abusividade da prática dos cartões de crédito consignado. Assim como no caso do assistido em referência, o consumidor sai do banco convicto de que celebrou um contrato de empréstimo consignado. Com isso, ele supõe que o valor constante da fatura enviada à sua residência é de pagamento opcional, caso queira quitar mais rapidamente o empréstimo realizado. A inadimplência deste tipo de contratação, pois, nunca é esporádica”, diz trecho da manifestação da Defensoria.
Decisão
No julgamento, o Tribunal de Justiça do Amazonas fixou teses a serem seguidas a partir de agora. Entre elas está a de que não existe contrato de empréstimo com contrato de cartão de crédito, sendo, uma, a modalidade principal e, outra, a modalidade secundária. Assim, há violação ao direito à informação, tendo em vista que o contrato de cartão de crédito consignado é um contrato autônomo.
Também foi considerado o entendimento de que as instituições financeiras que não informarem ou incorrerem em falha de informações prestadas aos consumidores, deverão restituí-los, em dobro, os valores cobrados a mais.
Outro entendimento é o de que as instituições financeiras devem demonstrar, sem nenhuma dúvida, que informaram os consumidores de forma clara sobre os termos de contratação dos cartões de crédito consignados, objetiva e em linguagem fácil, os meios de quitação da dívida, como obter acesso às faturas, informações no sentido de que o valor do saque será integralmente cobrado no mês subsequente, informações no sentido de que apenas o valor mínimo da fatura será debitado, diretamente, dos proventos do consumidor.
Também devem dar informações claras de que a ausência de pagamento da integralidade do valor dessas faturas acarretará a incidência de encargos rotativos sobre o saldo devedor. Além destes requisitos, os bancos deverão provar que disponibilizaram cópia dos contratos aos consumidores, cujas assinaturas, obrigatoriamente, constarão de todas as páginas do contrato.
Também foi considerado que há dano moral quando a contratação do cartão de crédito consignado ocorre sem a inequívoca ciência dos verdadeiros termos contratuais, seja por dolo da instituição financeira ou por erro de interpretação do consumidor, causado pela fragilidade das informações fornecidas.
Atendimento da DPE-AM
A Defensoria tem recebido inúmeros casos de cobrança indevida em contratos de cartão de crédito consignado. Neste caso, os consumidores que se sentirem lesados podem procurar o Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon) para atendimento, por meio do número (92) 98416-6494 no aplicativo Telegram.
“A decisão do TJAM de acolher as teses propostas pela DPE no IRDR, firmando teses em prol dos consumidores nessa questão de cartão de crédito consignado é muito positiva porque protege os consumidores. O Núcleo de Defesa do Consumidor seguirá atento a esta e outras práticas abusivas e os consumidores que se sentirem lesados podem entrar em contato conosco por meio do Telegram”, disse o defensor público Christiano Pinheiro, coordenador do Nudecom.
Texto: Márcia Guimarães
Foto: Evandro Seixas/DPE-AM