O que faz uma pessoa iniciar uma faculdade de Direito depois dos 40 anos? Para Darci Gama Firmo, de 51 anos, a resposta é o desejo de mudar de vida e buscar justiça social. Darci é indígena, filha de agricultores, de pai piratapuia e mãe tariana, nascida e criada no município de São Gabriel da Cachoeira (a 850 quilômetros de Manaus), onde 90% da população é de indígenas que, não por acaso, são os mais pobres e os que mais necessitam de acesso gratuito à justiça. Ela sempre quis exercer o Direito na Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) e, agora, servidora da instituição, realizará o sonho de fazer a diferença na vida das pessoas que mais precisam, em especial, os povos originários que resistem na região.
Para Darci, a educação transforma vidas. E foi à educação que ela recorreu quando seu relacionamento de 15 anos chegou ao fim e ela se viu sozinha, sem uma carreira e independência financeira. “Decidi que tinha que fazer alguma coisa e foi através do estudo que fiz. Aí fui estudar”, explica.
Isso foi há 10 anos e, na época, Darci morava em Manaus. Ela, que veio do ensino público e que estava há muitos anos sem estudar, se dedicou ao máximo e foi aprovada para o curso de Direito da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Entrou para o ensino superior pelo sistema de cotas, fazendo valer seu direito como indígena. Mas nada foi fácil.
“Para acompanhar o ritmo da faculdade de Direito, eu tinha que me esforçar o dobro. E eu me dediquei 100%, tanto, que no décimo período eu passei para a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], sem fazer cursinho. Quando formei, já tinha a OAB”, lembra Darci, que na época morava na casa de uma amiga para permanecer em Manaus e estudar.
Transpor barreiras
Ao ser questionada se sofreu preconceito na faculdade de Direito, ainda dominada por brancos, Darci diz que acha que “não”, mas que existia uma surpresa, de se impressionarem por ela ser uma indígena no ensino superior, e logo se dá conta de preconceitos não escancarados. “Ainda tem muito isso, essa visão de acharem que o indígena não tem capacidade. As pessoas pensam: não vou dar uma coisa mais difícil para ela fazer porque ela não vai saber. Aí, nesse sentido, sim, passei por isso”, pontua.
Darci, no entanto, nunca se deu por vencida. “Sempre procurei estudar e provar que a gente é capaz, só basta uma oportunidade. Para a gente é muito difícil, porque meu pai e minha mãe são indígenas, somos de comunidade, então, até mesmo arrumar emprego é difícil e a gente conseguiu”, diz.
Quando diz ‘a gente’, Darci se refere às irmãs e ao irmão que também são formados. “Tenho sete irmãos, três são formados. Meu irmão é formado em Administração e concursado da Susam [Secretaria de Estado da Saúde], tenho duas irmãs formadas em Pedagogia, uma sobrinha formada em Educação Física e outra que é médica. Então, a gente conseguiu as coisas através do estudo, pela educação”, comemora.
Ajudar pessoas
Darci sempre quis cursar Direito porque “é uma forma de ajudar muitas pessoas”. “E eu vi isso quando voltei a São Gabriel, o quanto a gente pode fazer a diferença na vida daqueles que não podem ter acesso à justiça. Vi a carência da população, que é prejudicada no seu direito por não conhecer a lei”, comenta.
Para Darci, os moradores da cidade são muito carentes de acesso à justiça. “As pessoas mais pobres não têm como alcançar isso. A população é 90% indígena, então, quando eu falo ‘os pobres’ é sempre a população indígena”, diz.
Após se formar, Darci voltou à cidade natal para cuidar da mãe, Amélia Gama, de 82 anos, e começou a advogar. O foco eram os concursos, em especial para a Defensoria. Mas era preciso garantir o sustento. E, quando começou a atender, havia muita gente que não tinha como pagar. “Fiz muito pro bono (atendeu gratuitamente), porque são pessoas que não têm para onde correr”.
Rapidamente se espalhou a notícia de que havia na cidade uma advogada que dava atenção aos mais pobres e aos indígenas, atendendo de forma gratuita. “As pessoas falam uma para a outra. São muito carentes, não têm de onde tirar dinheiro para pagar”, ressalta.
Como precisava ganhar dinheiro, Darci diz que prometeu a si mesma não mais atender de graça. Mas acabou não cumprindo a promessa. “Quando chega a pessoa desesperada, chorando, eu não tenho como negar. Se negar, acho que não consigo nem dormir. E quando sai uma decisão favorável, nossa, me sinto muito bem, fico muito feliz”, comenta.
Projeto social
Darci também é uma das idealizadoras do Projeto Mari’s, junto com a amiga Paula Cristina Peixoto, mãe de uma menina com microcefalia. É uma iniciativa social que busca a inclusão de crianças com deficiência, em especial as indígenas, e também presta suporte às famílias, com doações de alimentos, fraldas e cadeiras de roda, além de visitas. Com o projeto, foi criado um grupo, com vários comerciantes, esposas de militares e um psicólogo.
“As mães, a maioria indígena, escondem as crianças porque, na mente deles [indígenas] ter uma criança com deficiência é um castigo por alguma coisa que você fez. Elas passam a ter vergonha da criança. É uma questão cultural. Eles não aceitam crianças com deficiência”, explica Darci.
Antes da pandemia, o projeto realizou um desfile beneficente com as crianças. “Foi lindo. Tinha crianças que nunca tinham sido vistas. Algumas eram bem tristinhas e no dia do desfile estavam sorrindo, alegres, acenando para o público”, conta. Depois, as atividades ficaram restritas à entrega de sopa nas casas das famílias. São cerca de 30 atendidas pelo projeto. Mas, agora, o plano é retornar à normalidade das ações sociais, aos poucos.
Cultura indígena
Darci nasceu na comunidade Curicuriari. A família saiu de lá quando ela tinha cinco anos e foi morar em um sítio próximo à cidade. Mas foi só quando tinha 13 anos que foi para a cidade, para ir à escola. “Lembro do sítio onde a gente morava, que a gente subia o rio Curicuriari para pescar. Eram meses pescando por lá. E onde a gente chegava, fazia aquele acampamentozinho. A gente passava três meses pescando”, conta.
Apesar da origem indígena, Darci não fala as línguas tukano e nheengatu, comuns entre os povos da região. Ela conta que entende algumas palavras e consegue se comunicar, mas não fala fluentemente.
“A minha mãe se criou em internato de freiras, tanto ela quanto o meu pai. E aí foram perdendo a língua. O meu pai já falava bem pouco. Isso era tirado deles. Eles eram impedidos de falar. Era obrigado falar português. Eu até brigo, porque meu pai celebrava a missa toda em latim, mas não sabia falar a língua dele, porque isso era tirado deles”, explica Darci, referindo-se à forte presença dos salesianos na região.
“Lamento, gostaria de falar, porque é a nossa língua, é da nossa origem. Eles eram proibidos de falar, de realizar suas festas, de praticar suas crenças. Isso é uma violência muito grande, tanto que hoje pouca gente da nova geração fala as línguas, e muitas se perderam”, afirma Darci. Agora ela quer aprender nheengatu e tukano com a mãe, para falar fluentemente.
Defensoria em São Gabriel
Darci tinha planos de fazer mestrado em Direito Ambiental, em Manaus. Mas, como teve que retornar à cidade natal para cuidar da mãe, que tem 82 anos e é diabética, acabou seguindo outro caminho. Quando foi lançado o concurso para o Polo da Defensoria no Alto Rio Negro, Darci se inscreveu para o cargo de analista jurídico e foi aprovada.
“Como eu já tinha estudado tanto, decidi fazer. Eu já tinha feito um do TRT [Tribunal Regional do Trabalho] e também um da Defensoria, que era só para Manaus. Não tinha passado”, conta.
Darci tomou posse do cargo no dia da inauguração do polo, em 10 de setembro, e espera contribuir com a população. “Posso fazer uma diferença maior sendo da Defensoria, porque eu conheço a realidade deles. Eles vêm de comunidades resolver alguma coisa, remando, ou naquelas ‘rabetinhas’, e não conseguem”, avalia. “Através da Defensoria, vou alcançar isso, fazer a diferença na vida das pessoas que mais precisam, que são os indígenas”, conclui.
Texto: Márcia Guimarães/DPE-AM
Fotos: Clóvis Miranda/DPE-AM e Acervo Pessoal